Uma agenda qualquer

 
Veste-se em silêncio, uniforme diário. O jaleco branco, sujo, cala-se em amarelo discreto. Rosto limpo, barba sepultada, adentra a impessoalidade higiênica do hospital. Efervescente em agonias e carnavais, sua mente retorna a sangrias nostálgicas de um tempo charlatão, onde seu velho avô, morto morrido em casa, sorri em despedida ao neto, que indiferente gargalha do fim. Ele se lembra do avô e do brinquedo, e também do trabalho; a medicina que os liga, em ciclo. Em sangue e sono, o dia se passa, feito sonho mal vivido. No bar, desaba com o psicólogo: a cada dia sofro asas, cada vez maiores. Whisky, profissional de renome internacional, desenha em pensamentos: Há asas, mesmo esqueléticas, em cada servente com as costas marcadas pelos sacos de cimento; em cada bit de transações bancárias; em cada empréstimo feito a juros do feto feito na noite, de pinga e paixão, da já imemoriável cidade flutuante. Há asas sim, entre arranha-céus e palafitas, entre nuvens de concreto e de tinta, onde se sorri, da chegada e da partida, da morte e da vida. Isso! EU também sorrio, aqui as palavras, minhas asas...
- Doutor, com licença, estamos fechando. Gostaria de pedir algo antes de fecharmos a conta? – Diz o garçom, impecável na educação, a tanto custo, decorada.
O jovem doutor, pede então mais um whisky, passando as mãos do garçom uma quantidade de dinheiro que em muito sobrepuja o valor devido. A gorjeta fabrica um sorriso rápido e inesperado.
Uma vez só, as palavras do doutor Silva voltam a correr pelas linhas da agenda, cobrem totalmente o dia, cheio de compromissos, que se seguirá.
...não sobrepujam o brilho de meu crédito, no banco assenta-se minha dignidade. Cuspir em letras as asas sofridas, isto é tudo? Não, nem tudo se resume a corrosão dos sonhos; lágrimas assinarão os versos vindouros, sem identidade, sem existência.
 
Autor Convidado: Rafael Martins

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